Parte III
Capítulo Inicial, atrasado e fora do lugar, para apresentar os “sapatos pretos” e a sua intrigante e anómala história de amor.[1]
Era uma vez, antigamente, quando a moda dos sapatos era exclusivamente, a moda dos sapatos brilhantes, pretos e pontiagudos, e em que as crianças chegavam no bico das cegonhas...era uma vez, um tempo muito diferente do de hoje, em que os meninos e as meninas já nascem a saber de quase tudo quanto há para saber e diz-se, por aprenderem no ventre materno, como se se fizessem psicoanalisar para escolherem, cada qual, o complexo “preferido”, a angústia, a solidão, a violência, o amor, ou todos à uma.
Mas foi naquele tempo, então, que aconteceu uma insólita história de amor entre dois sapatos pretos.
Tinham sido gerados e executados, no planeta mais próximo do Sol, onde tudo brilha e reluz e a fantasia se multiplica na imensidão dos espelhos. Num planeta onde, por isso, nada podia ser escondido: nem os objectos, nem os sentimentos, nem mesmo os pensamentos, porque tudo, irremediavelmente tudo, era uma eterna exposição de onde exalava uma espécie de vida reluzente e encantadora, capaz de fazer daquele lugar um paraíso mágico, sem a mentira. A única excepção eram os sapatos, por serem pretos, o que fazia deles motivo de muitas conversas, porque destoavam naquele lugar e por isso, sentiam-se incomodados e obrigados a viverem só um para o outro. Tinham sido gerados com um lapso de tempo, entre ambos, sem significado, mas suficiente para mantendo-se juntos experimentarem uma imensidade de possibilidades, mais ou menos ricas, capazes de os dotarem de acções ou comportamentos construtivos e encorajantes (criativos) ou, pelo contrário, restritivos ou destrutivos e, mais do que isso, muito punitivos. Tentando, cada um deles, agir sobre a experiência do outro, ou da sua própria, e receando cair, inconscientemente, nos extremos daquelas, os sapatos pretos, não fugiram à regra, ao resguardarem-se, por certo tempo, naquela peculiar embalagem, que lhes era totalmente adequada, compatível com a sua natureza diferente. Não saberiam eles, que assim estavam a usar os seus “mecanismos de defesa”, socorrendo-se a uma dupla violência? Se, por um lado, estavam alheados do mundo “real”, por outro, conhecendo-se como se conheciam, agiam não só sobre si mesmos, mas sobre o outro, numa atitude de reciprocidade, inúmeras vezes nefasta. Não constituíam os sapatos um par que se completavam, necessários a cada um dos pés que os calçava?
Ambos tinham o sentido da negação das experiências porque tinham passado, ambos se sentiam insatisfeitos, porquanto se encontravam num isolamento provisório, à espera, porventura, de uma solidão perpétua. Estavam como dois indivíduos, sem coisa alguma entre eles, e o seu problema, ou um dos seus problemas, era criar algo a partir de nada, num acto de imaginação.
Rezam as vozes, que um dos sapatos queria a todo o custo criar-se a si próprio, porque possuía um sentimento profundo de que fora “ mal criado”, criado apenas para ser destruído, também no brilho, quer estivesse na saca, ou nos Oceanos, no pé de uma sereia. Mas do outro, rezavam as vozes de que andava alienado, iniciado no desespero e prestes a terminar no fracasso.
Desta forma, não era fácil a dois sapatos, de pés distintos, encontrarem-se e fazerem parte da mesma história de amor, para a eternidade, porque isso implicaria uma confiança profunda na integridade do “eu”, profundamente abalada.
Na verdade, o sapato dado a fantasias estava obcecado pelo outro, mas isso tornava-o cada vez mais insatisfeito, porque o amor também pode ser um acto de violência suplementar, uma confusão de fantasmas, de corações quebrados, cheios de remendos e de vinganças.
E o narrador disse: - “os sapatos pretos, brilhantes e pontiagudos, não souberam ser prudentes, no que respeita à cegueira afectiva. Resta a um deles um medo profundo de viver e de amar como de morrer. E foi esse, desde sempre, desde o antigamente, o destino que lhe estava traçado”. E esse sapato disse: - “Escolheria os estreitos caminhos que conduzem à encruzilhada do fim da vida...”
FIM
[1] Esta história foi começada em 15 de Maio de 2002 e concluída em Agosto de 2003