CANtar o mundo
Hoje
O tempo como que abrandou o seu passo
Vai mais lento e pesado
Caiu uma névoa sobre o espaço
A erosão rasgou os seus contornos
Os gestos são lentos como a calmaria do Verão
Fugiram palavras
O vazio sugou as ideias
Está mais brando o mundo
Já não há só laranjas
Há mais frutos!
CONtar o mundo
Constelações!
Peixes e Búzios à nossa volta – Constelações!
CONtar o mundo
Moldava, Olhos Rasos de Água
Moldava voltava, dia após dia, àquela casa, guardada por altos muros e portões fortes, oxidados pela ressalga e cheiro a maresia, que poisava, também, nos becos, na calçada, nas plantas, nas suas coisas, dando a tudo o que era dela um perfume que tão bem conhecia.
Depois, já dentro em casa, Moldava antes mesmo de a noite se fazer anunciar, tomava conta da vida que faltava cumprir: a loiça era lavada, o chão varrido, as roupas arrumadas, as camas desfeitas, os livros empilhados, os últimos contactos feitos…tudo era posto no seu lugar! Cada coisa encontrava, sempre, o seu lugar.
Quase desfeita pelo fim do dia, com as mãos ásperas e os olhos quebrados, deixava-se penetrar pela água do banho. Nessa altura sentia uma grande limpeza dentro de si, como se estivesse, também, a lavar a alma. Havia na casa, agora, um grande sossego. O dia estava pronto. O silêncio crescia com o tempo pela noite dentro e neste silêncio implacável, Moldava olhava os tijolos, a cal, a madeira, os cortinados, as mobílias, o cadeirão onde costumava ler, a cesta das flores…como se a relação que estabelecia entre todas estas coisas fosse a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.
Parecia que as coisas a olhavam, a compreendiam e ela procurava nelas o centro da atenção. Criava-se, a cada instante, uma cumplicidade e unidade entre ela e o que a rodeava, e ela pertencia a essa unidade, obstinadamente.
Era assim que ela, um dia atrás do outro, quando ia dormir, depois de ter recolhido os sacos das laranjas, encontrava no sono uma infinita liberdade, que ela tanto precisava para viver.
Lá fora! Lá fora, os animais uivavam e digladiavam-se, porque estavam vivos e despertos e o mar, esse, bailava, em gestos, soltando a sua maresia que poisava nas suas coisas.