CONtar o mundo
Nunca me lembro de ter tido receio de crescer, certamente porque não pensava nisso enquanto andava a crescer. Na minha infância era tudo pacato, suave, morno, na medida certa, sem sobressaltos, e por isso o meu processo de desenvolvimento não passou por aquela fase de resistência obstinada aos pais, que presumo existe, algures nela, nem pelo receio de crescer, porque o gosto de viver não dava tempo para medos, a não ser o medo dos papões da beira da estrada, quando vínhamos da escola, pezinhos no chão, já noite escuro.
Não se falava em ter ou não ter sentido para a vida, provavelmente não se sabia sequer isso o que era mas, sem darmos por isso, também, ele desenvolvia-se lentamente com os nossos corpos e espíritos. Tudo era um verdadeiro descanso!
Depois! Depois, uma adversidade aqui, uma adversidade ali, mas que era sustentada por uma espécie de esperança no futuro: “quando eu for grande”. Mas um dia o futuro deixou de ser futuro para ser presente. Foi quando a natureza problemática da vida deixou de estar no futuro para estar no presente, foi quando, para não ser vencida por ela, foi necessário uma entrega à fuga e à fantasia.
Farta de ser adulta, de viver antecipando o futuro, um dia destes olhei a prateleira de um quarto de criança e vi um mundo de brinquedos, de pequeninas “prendas de amor” e não as pude deixar de pegar.
Brinquei durante uma tarde inteira, com as casinhas: olhei-as de todos os lados, escolhi as fachadas, os adereços, escolhi e pedalei o carro, apanhei sol, fugi ao lobo mau, fui princesa e fada num castelo cor-de-rosa, fui a um café sozinha e quando olhei o relógio, já depois de ter trepado a uma laranjeira de brincadeira, atirei-me ao chão para me sentir suja para depois me lavar e sentir o prazer de estar lavada! Na hora do banho tive receio de ir com a água que escorria pelo ralo, de tão pequenina que eu era… Mas à meia-noite, antes de começar um novo dia, arrumei tudo para voltar a ser adulta, sem vontade, e voltei a ter medo.
“CRIANÇA de fronte sem nuvens
E olhos cheios de sonhos e encantos,
Apesar do tempo veloz
E de estarmos separados por meia vida, eu e tu,
O teu amoroso sorriso certamente acolherá
A prenda de amor de um conto de fadas.
C.L. Dogson (Lewis Carroll), em Through the Looking Glass